Fonte: www.cempre.org.br
Os resultados positivos do projeto-piloto realizado em Cantagalo (RJ) devem estimular a expansão da utilização de resíduos urbanos pela indústria cimenteira.
Os cerca de 20 mil habitantes do município fluminense de Cantagalo têm bons motivos para se orgulhar. Sua pequena cidade está dando um grande exemplo para todo o país ao ser a primeira a destinar seus resíduos sólidos urbanos para a fabricação de cimento. Conhecida como coprocessamento, a técnica consiste na utilização de resíduos em substituição parcial do combustível fóssil que alimenta os fornos nos quais é produzido o clínquer (a matériaprima do cimento).
Na realidade, o uso de resíduos industriais e de passivos ambientais em fornos de cimento não é recente. Essa alternativa é utilizada no Brasil desde 1999 quando entrou em vigor a Resolução 264 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Na Comunidade Européia e nos Estados Unidos, trata-se de uma atividade regulamentada e difundida desde a década de 70.
A novidade concretizada em Cantagalo diz respeito à utilização de resíduos urbanos no coprocessamento, o que só foi possível em função de uma parceria entre a Prefeitura e a Lafarge que possui larga experiência no uso dessa tecnologia em países como Alemanha, Inglaterra e Áustria. “A maioria dos aterros sanitários brasileiros está no limite de sua capacidade e estamos diante de uma alternativa viável e ecologicamente correta para a destinação dos resíduos urbanos. Um aspecto interessante é que o coprocessamento é compatível e complementar à reciclagem: só coprocessamos o que não é reciclável e ainda ajudamos na geração de empregos porque os resíduos precisam ser classificados e preparados para serem coprocessados”, detalha Francisco Leme, diretor-executivo da Eco-processa, joint venture formada pelos grupos Lafarge e Cimpor para a gestão do tratamento de resíduos no setor cimenteiro.
Combustível alternativo
Para o projeto de Cantagalo, os resíduos foram caracterizados pela Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos (Coppetec), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o processo foi acompanhado e aprovado por órgãos ambientais.“Buscamos reduzir ao máximo o volume de material enviado ao aterro municipal por meio de diversas ações. Com essa iniciativa, nossa perspectiva é atingir a meta ‘Aterro Zero’ em alguns anos”, planeja Gustavo Roque Bard, secretário municipal do Meio Ambiente de Cantagalo.
Os resíduos classificados que não são utilizados para reciclagem ou compostagem partem para o coprocessamento, sem interferir na qualidade final do produto (veja matéria abaixo). Além de evitar a geração de passivos ambientais em aterros sanitários, esse sistema contribui para a preservação de recursos naturais não-renováveis utilizados como combustível nos fornos da indústria cimenteira.
“O coprocessamento requer investimentos da iniciativa privada e o interesse dos órgãos públicos em desenvolver políticas e programas de reciclagem e tratamento de resíduos urbanos”, destaca Francisco Leme. “O Brasil ainda não tem uma política nacional de gerenciamento de resíduos sólidos e isto é fundamental para o avanço de projetos voltados para seu reaproveitamento”, garante.
UM GRANDE POTENCIAL A SER EXPLORADO
Para entender melhor como funciona o coprocessamento e os desafios e oportunidades para sua expansão, o Cempre Informa ouviu dois especialistas da Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) – Mario William Esper, gerente de Relações Institucionais, e Yushiro Kihara, gerente de Tecnologia. Confira suas explicações:
• Quando e onde teve início o coprocessamento em indústrias cimenteiras?
O Canadá e a França foram pioneiros no coprocessamento, pois desde 1976 utilizam resíduos industriais como combustível e substitutos de matériaprima na fabricação de cimento. No Brasil, a atividade teve sua origem na década de 90 e as primeiras experiências ocorreram nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
• De que forma o resíduo é aproveitado na fabricação de cimento?
O cimento é produzido a partir do calcário e da argila que são fundidos em fornos de altas temperaturas e dão origem ao clínquer que é a base para a fabricação dos diversos tipos de cimentos existentes. Os resíduos podem ser aproveitados de duas formas: os que têm poder calorífico (por conter carbono) entram no processo como combustível e os que têm componentes como cálcio e ferro são incorporados ao cimento.
• E a biomassa?
O uso de biomassa, além de gerar energia pode também gerar crédito de carbono. Na Alemanha, por exemplo, diferentes resíduos contendo biomassa são coprocessados, destacando-se pneus (27%), resíduos industriais pré-tratados (20%), resíduos urbanos tratados (40%), carne contaminada e osso animal (100%), lama de tratamento de esgoto (100%) e madeira (100%). Há uma infinidade de resíduos industriais que são destruídos em fornos de cimento. Os mais comuns são borras petroquímicas, solventes usados, óleos, plásticos, PET, papel, madeira, areias de fundição, SPL, lamas de tratamento, pneus usados, lodo de tratamento de esgoto, borrachas, ossos de animais, rações e cereais contaminados.
• Em que países essa tecnologia é mais utilizada?
O coprocessamento é uma tecnologia amplamente adotada em todo o mundo, sobretudo por países com parque industrial desenvolvido. Praticamente todas as nações da Europa queimam resíduos em fornos de cimento. A Noruega, por exemplo, utiliza a tecnologia como atividade oficial de incineração de seus resíduos. Nas Américas, o coprocessamento também acontece em quase todos os países, com destaque para o Canadá que é referência no que diz respeito à ecoeficiência.
• Quem trouxe o coprocessamento para o Brasil?
Os modelos de coprocessamento vieram dos Estados Unidos e da Europa, trazidos pela Lafarge, Holcim e Votorantim. O Brasil coprocessa, anualmente, cerca de 1 milhão de toneladas de resíduos– contra uma capacidade de 2,5 milhões de toneladas. Esses resíduos provêm de diversos segmentos da indústria – siderúrgica, petroquímica, automobilística, de alumínio, tintas, embalagens, papel e pneumáticos. Atualmente, das 42 fábricas de cimento instaladas no Brasil, 34 estão licenciadas para coprocessar pneus, resíduos industriais e resíduos domésticos tratados.
• Quais suas vantagens?
São diversas vantagens que apontam em diferentes direções. Em primeiro lugar, essa forma de destruição é a única que não gera cinzas ou qualquer outro passivo após a queima, ou seja, até as cinzas são incorporadas ao cimento, sem alterar as propriedades e a qualidade do produto. O coprocessamento é uma excelente alternativa de combate ao passivo ambiental, pois não polui o meio ambiente nem provoca danos à saúde. Há também a redução do uso de óleo combustível, carvão mineral e coque de petróleo – na Alemanha, mais de 50% do combustível fóssil foi substituído por combustíveis alternativos nos fornos de cimento. O coprocessamento contribui ainda para a sustentabilidade da indústria, disponibiliza uma alternativa de disposição de resíduos industriais e gera empregos e impostos, contribuindo para o desenvolvimento de regiõesonde se localizam as fábricas de cimento.
• O coprocessamento opera com qualquer tipo de resíduo urbano?
A legislação permite que somente os resíduos urbanos selecionados e tratados sejam coprocessados. Os resíduos municipais brutos, conforme determinação da Resolução 264 do Conama, não podem ser coprocessados em fornos de cimento. Também não podem ser coprocessados os resíduos radioativos, de serviços de saúde, substâncias explosivas, substâncias organocloradas e agrotóxicos. Os resíduos orgânicos podem ser utilizados como combustíveis alternativos desde que atendam à legislação vigente. A denominação “resíduos orgânicos” refere-se a qualquer material que tenha carbono em sua composição – entre eles, podemos citar produtos de origem animal, biomassa e pneus. Uma curiosidade: na Europa, os fornos de cimento estiveram entre os principais destruidores da carne infectada com o mal da vaca louca.
• Os resíduos passam por algum tratamento ao chegar à unidade produtora?
O processo de fabricação de cimento é altamente monitorado para garantir a qualidade do produto. Esse cuidado inclui os resíduos que, antes de serem queimados, passam por análises e por um processo de tratamento chamado “blend”. As análises abrangem controles de umidade, granulometria e composição para adequá-los à legislação, aos requisitos de saúde, segurança e às condições operacionais dos fornos.
• As emissões gasosas geradas recebem algum tipo de tratamento?
O forno de cimento é um gerador termoquímico que opera em condições de alta temperatura (1.450 ºC), com tempo de residência longo (> 6 segundos, > 1.200 ºC) e gases limpantes (CO2). Nessas condições, toda matéria orgânica é destruída, gerando CO2 e H2O. Para receber a licença dos órgãos ambientais, os fornos que coprocessam passam por rigorosos testes de queima. Vale destacar que o controle das emissões dos fornos de cimento brasileiros é um dos mais rigorosos do mundo.
• Quais as perspectivas para o coprocessamento?
Vemos o futuro com grande otimismo em função do potencial existente e do bom desempenho constatado em outros países. Ainda existem entraves ao coprocessamento no que tange, por exemplo, os licenciamentos ambientais, os aspectos econômicos e a falta de incentivos fiscais, mas essa tecnologia precisa ser vista como uma excelente solução para o problema dos aterros sanitários que, além de insuficientes, representam um passivo ambiental significativo.