Esse texto extraido do site http://www.ecopop.com.br e escrito por Begha Lindemberg em outubro de 2005, mostra a simplicidade de um guardião da natureza, que em pleno século XXI, vive da pesca, porém da pesca de lixo….se isso vira moda veremos aqui em Sâo Paulo, a competitividade , afinal nossos rios estão super cheios de lixo, basta dar uma olhadinha no Rio Pinheiros e Tietê…
O mar não está pra peixe na Baía de Guanabara. Os tempos de água cristalina e muitos frutos do mar parecem só existir na memória de gente como o pescador Carlos Borges, morador do Complexo da Maré (Zona Norte carioca) há 40 anos. Há sete anos desempregado, Carlos sobrevive há quatro da pesca de… garrafa PET. Ele chegou a catar 100 quilos de PET por dia. Hoje, por conta da concorrência, só consegue pescar 20 quilos.
“Só que existe uma diferença: os outros só recolhem o lixo ‘fino’. Eu cato o lixo e faço a limpeza”, diz o pescador. Ele não só retira os resíduos mais pesados, como sacos de lixo e pneus velhos, como ainda separa tudo e coloca na beirada do mangue.
De quebra, Carlos ainda entra em contato com a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) e pede que ela recolha o lixo. “Se todos fizessem um pouquinho e não pensassem só no lucro, diminuiria um pouco a poluição na Baía de Guanabara”, justifica.
Com seu barquinho, o pescador costuma “rodar o mar todo” – passa perto da cidade de Niterói, às margens da baía, costeia a Ilha do Fundão, a estrada da Ilha do Governador, e sobretudo pelos ‘valões’ que dão acesso às comunidades do Complexo da Maré, como o Canal do Cunha (Conjunto Esperança) e o rio Ramos (entre as favelas Parque União e Rubens Vaz).
Panela achada na maré prepara refeição |
Às vezes, o experiente pescador, com 25 anos de mar, também se mete em confusão. Certo dia, quando estava passando por um de seus tradicionais caminhos – um canal que cruza a Avenida Brasil e tem largura equivalente a quatro pistas da estrada -, Carlos perdeu a noção do tempo. “A maré encheu e o barco, cheio de garrafa, não passava mais. Fui obrigado a esperar a maré descer. Tem que ter coragem, meu filho!”, diz ele.
Pesca até de colchão
Em seu trabalho, o pescador já achou de tudo. Até colchão de solteiro, ainda embalado no plástico, novinho em folha. Debaixo da ponte, encontrou duas panelas de alumínio e até uma panela de pressão. “Mandei a mulher limpar, desinfetar e, no mesmo dia, ela colocou um feijão no fogo. Pra quem não tem, chegou numa boa hora, tá brabo pra comprar”.
O presente inesperado achado na baía veio de pessoas que vivem na beirada do valão. Segundo Carlos, ao deixar secar os utensílios no muro, o vento derruba ou alguém esbarra, e as panelas vão todas para a água.
Ele não se cansa de alertar seus vizinhos para a importância de recolherem o lixo corretamente e não deixar que ele vá parar nos valões e rios que deságuam na baía. Está pensando até em fazer alguns cartões pedindo para os moradores evitarem poluir as águas. “Em vez de jogarem no mar, eu vou até o local”, diz o pescador. É só separar, explica, que ele passa na parte da manhã e da tarde.
Lixo acumulado nos manguezais não espanta garças que vivem na baía |
Certa vez, no valão da favela Rubens Vaz, Carlos presenciou um rapaz jogando uma grande quantidade de entulho no valão. “Eu reclamei com ele, e comentei: se o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) te pega fazendo isso, você ia pagar uma multa e ainda ia ter que retirar todo o lixo que jogou no valão. Sem falar que você está matando peixes e caranguejos”, conta.
A resposta, dada com ”a cara mais cínica do mundo”, foi que a água levaria o entulho. O pescador não se deu por vencido e foi, ele mesmo, catar o lixo.
No mesmo valão, dia desses, uma moradora que o viu passar com o barco pediu a Carlos que ele desse uma olhada no cano que deságua dentro do valão, que estava entupido. “Quando observei, o cano estava cheio de lama e lixo, evitando que a água do esgoto sanitário descesse. Pedi que ela me emprestasse um ferro, enfiei no cano de uma só uma vez, e acabou o entupimento”, lembra.
A vizinha ficou tão grata que ofereceu R$ 5 em pagamento pelo serviço. “Ela ficou minha amiga e eu pedi para que não jogasse lixo no valão. Até hoje ela separa o lixo dela e os das vizinhas para mim”. O problema do esgoto caindo na baía, porém, é mais complicado de ser resolvido por uma única pessoa, lamenta o pescador.
Ele agora está tentando montar uma pequena colônia de pescadores para dez barcos de pequeno porte. O lugar escolhido fica embaixo da ponte, próximo ao Batalhão da Maré.
Seu Carlos ainda tira um tempo para fazer comida, dar banho e levar as crianças para a escola. Às vezes, até leva os pequeninos para o mar, pois a esposa, Dona Marlene, de 46 anos, trabalha fora. O casal tem quatro filhos, o mais novo de 5, o mais velho de 23 anos. Lucas, de 7 anos, contou que quando crescer quer ser “que nem o papai”. E quando o pai morrer, ele vai assumir seu lugar, catando PET e limpando o mar.
O pescador diz que precisa de apoio, pois o barco com o qual trabalha hoje não é dele. É emprestado e tem 4,70m de largura – é um pequeno caiaque, a remo. “Estou me sentindo cansado de tanto remar, por isso estou construindo meu próprio barco. É um pouco maior, mas ainda está faltando o fundo e material como resina. A mão-de-obra é comigo mesmo.”
Ele não usa luvas, só a bota. “Nunca fui a um posto de saúde nem hospital, nunca tive problema de saúde. Pego nesse lixo todo aí, são 25 anos de mar. Minha doença é só a fome.”